"A cabeça pensa onde os pés pisam" Paulo Freire

domingo, 19 de setembro de 2010

Entrevista com Alberto Pizango


por Daniel Barreto de Barros Moreira e Theo Martins Lubliner

Do povo Chaui, Alberto Pizango é bilíngue já que o seu avô foi vendido ainda jovem a um senhor que lhe ensinou castelhano. Isso possibilitou a Pizango graduar-se em educação na Universidad Nacional de la Amazonía Peruana e trabalhar com a alfabetização de camponeses que só falavam chaui. Respeitado pelo seu trabalho, em 1999 foi escolhido presidente da federação de sua comunidade. Assim começou sua história como representante de seu povo. Em 2003 foi eleito coordenador geral dos povos indígenas de San Lorenzo, onde trabalhou por 3 anos. Em 2005 foi escolhido presidente da Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (AIDESEP) e reeleito em 2008, tendo mandato estendido até 2011. Pizango é hoje presidente da AIDESEP, se defende de quatro processos judiciais por ser o porta-voz dos movimentos indígenas amazônicos e é o principal nome para representar a união dos movimentos sociais peruanos nas eleições presidenciais de 2011 através do instrumento político chamado Alianza para la Alternativa de la Humanidad (APHU).

Como você vê as críticas que o governo peruano tem feito a AIDESEP? Quais são as verdadeiras reivindicações dessa organização?


Tem-se dito que a AIDESEP é uma organização que recebe fundos do exterior para boicotar o Estado peruano. Diz-se que há uma conspiração internacional, que há apoio de Hugo Chávez, de Tumbalá e dos grupos radicais. Isso é falso. Com todos os despejos que houve, os povos indígenas se organizaram há 30 anos na AIDESEP. Na Amazônia, onde está concentrada, tem como meta abarcar os 28 milhões de hectares a que têm direito os povos indígenas, e isso é o que estamos reclamando. Hoje temos, com quase todas as reservas territoriais e reservas comunais, cerca de 18 milhões de hectares. Por essa questão a AIDESEP nasceu e começou a trabalhar o tema de titulação de comunidades.


O conflito em Bagua tem relação com essa reivindicação? O que realmente aconteceu no conflito que ficou conhecido como “Baguazo”?


Sem consultar os povos e então violando a constituição e o Convênio 169, o governo lançou em dezembro de 2007 102 decretos legislativos muito prejudiciais para nós. Então os povos decidiram organizar-se e sair a protestar pacificamente. Esses 102 decretos afetavam diretamente a vida dos povos, em relação à sua existência e ao seu território. Mesmo o governo nos chamando de minoria incapaz de impedir o desenvolvimento do país, os povos continuaram dizendo que são donos de seu próprio destino e de seus territórios, já que estão aqui desde antes da criação do Estado Peruano. Em 2008 iniciou-se então uma mobilização. O governo se comprometeu a conformar uma comissão multipartidária para avaliar os decretos, mas nada aconteceu. Então em dezembro de 2008 os povos decidiram que se até fins de março de 2009 o governo não derrogasse esses decretos, reiniciariam as mobilizações. O governo mesmo assim decidiu, junto ao seu grupo de tecnocratas, impor esses decretos aos povos, violando o Convênio 169. Os povos então retomaram a mobilização. Não é possível que nós estejamos vivendo em extrema pobreza sendo que os recursos carboníferos e mineiros se encontram em nosso território, diziam os povos. Depois de 55 dias de mobilização já não podiam mais esperar. Indignaram-se e por ai saíram. Longe de o governo solucionar esse problema, o que fez foi criar Estado de Emergência. Então em 12 de maio os povos decidiram retroceder e retomar a livre determinação. Os povos sempre vão dizer que o governo é o único responsável por tudo. Se o governo tivesse respeitado a lei, nada disso (34 mortos, entre policiais e indígenas) teria acontecido.


E como foi a cobertura dos meios de comunicação durante o conflito em Bagua?


A maioria da imprensa praticamente não o cobriu. Havia uma pressão midiática e do governo para que não houvesse cobertura. Nós contávamos com o apoio dos amigos. Aqui cumpriram, e cumprem, um papel muito importante o jornal La República, O jornal La Primera e a TeleSur. O resto dos meios, principalmente de Lima, fazia como se nada estivesse ocorrendo. Aqui no Peru a criminalização do protesto é bem contundente. O poder econômico das grandes transnacionais compra a consciência de muitos dos cidadãos. A imprensa serve para isso. Paga-se e se publica o que lhe convém.


Como tem sido o processo de criminalização dos movimentos sociais no Peru?


Eu acredito que a criminalização do protesto começa antes do Baguazo. Já em setembro e outubro de 2008 o governo começa a implementar essas leis de criminalização porque sabia que os povos iriam se unir ainda mais por causa dos retrocessos de 2008. Longe de derrubar os decretos legislativos, criou leis para oprimir e para reprimir a população. Dia 12 de maio de 2009 se decretou Estado de Emergência aqui. Por isso os povos me disseram: “veja, o governo ao invés de solucionar os problemas está criando Estado de Emergência. Muito bem, pois diga ao país e ao governo que nós vamos declarar insurgência em nossos próprios territórios. Não vamos obedecer à lei e aos decretos legislativos que o governo está implementando”. Como sou porta-voz, cumpri meu papel e disse isso na conferência de imprensa. O governo tomou essa palavra (insurgência) e alegou que não é um governo autoritário e sim democrático e, portanto, não deveríamos fazer isso. Só que eles esqueceram que a nossa constituição diz claramente que os povos têm direito a insurgir frente a um governo que a desrespeite. E por estar defendendo os direitos e por ser o porta-voz dos povos eu tenho quatro denúncias. A advogada estava vendo isso enquanto eu estava exilado. Se eu não tivesse a valentia de voltar, meu processo seria deixado de lado. Somos cinco dirigentes processados. A minha denúncia é por apologia à violência. Quero que até setembro acabe essa perseguição política que estou sofrendo e que sejam retiradas essas denuncias para em outubro e novembro poder fazer uma viagem internacional pedindo solidariedade.


Entrando no tema internacional, como você vê o desenvolvimento da Integración para Inversión en Infraestructura Regional Suramericana (IIRSA)? Você acha que esse é o modelo de desenvolvimento que precisamos?


Eu acredito que o tema da IIRSA é importante para o “benefício” de todas as sociedades latino-americanas. No entanto, se não está bem organizada, deixa de ser um projeto para o desenvolvimento regional e passa a criar mais conflitos e com eles mais avassalamento dos povos. Tiram os direitos dos povos e avançam no tema de colonização. Digo que a IIRSA é uma nova forma de colonização. Essa colonização está se aplicando de forma muito sutil e mascarada com o que se chama agora de “seguridad democrática”. Deveria existir uma forma em que não sejam os políticos que determinam a implantação de projetos e sim os povos, os cidadãos, os seres humanos. Temos que dialogar antes que se implementem políticas de desenvolvimento. Na IIRSA eu vejo destruição, pois não há igualdade de benefícios. E nós não utilizamos a palavra desenvolvimento, mas sim “pervivência”, que é quando os seres humanos retomam a sabedoria dos povos. Isso não significa retroceder, significa tomar consciência, já que nosso planeta está se deteriorando e também com isso a vida. Existe uma mão que está controlando tudo isso que é os EUA, o que gera a necessidade de nós latino-americanos nos unirmos. Com relação à ALBA (Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América), acredito que seja um importantíssimo modelo de integração e devemos democratiza-lo.


E como está sendo o processo de integração entre os movimentos sociais peruanos?

Faz 30 anos que nos organizamos como povo e vimos propondo e reivindicando. Mesmo depois de tanto tempo lutando e conseguindo alguns pequenos avanços no tema da educação e saúde, o governo ou o Estado não tem revertido essas propostas em politicas públicas que ajudem a melhorar a nossa qualidade de vida. Frente a isso os povos decidiram criar uma ferramenta politica para participar das eleições, a partir das quais pudessem ter representantes que tomem decisões. Para isso nos deram esse mandato e disseram que nós da coordenação temos que formar esse partido politico. A partir desse processo se deu a construção da APHU. Antes mesmo do Baguazo já estávamos nos preparando para consensuar com as outras organizações dos povos originários dos Andes e da costa. Tivemos avançando nisso e foi criado um espaço muito mais amplo que se chama Frente por la Vida e por la Soberania Nacional. Agora estamos com o processo de coleta de assinaturas (para que o partido se oficialize e legalize). Estamos correndo para que essa proposta da Amazônia seja concensuada com a costa e com os Andes. A APHU aparece para unir todas as forças sociais que de alguma forma tem sido enganadas por parte dos políticos tradicionais.


E quais são as propostas da APHU para as eleições de 2011?

Queremos lutar pelos direitos que têm sido roubados dos povos. Queremos uma reforma constitucional a partir da qual se garanta a livre determinação dos povos. É a partir da livre determinação que poderemos entrar na luta para a erradicação da corrupção e da delinquência em todo o país. O outro tema principal é o de manejo dos recursos. Aqui houve anos de exploração mineira, carbonífera e florestal, mas sem garantia. Os grandes empresários e o Estado tem que obedecer regras que garantam que os cidadãos peruanos sejam tratados com igualdade de condições e se beneficiem dos recursos que saem do seu território. Nesse tempo de experiência que tenho, estou vendo que os povos já estão cansados da politica demagógica. O que também vejo agora é o tema da inclusão. O tema da minoria já está sendo desmascarado. Aqui existe uma grande maioria de povos originários e esses povos têm que se apropriar das politicas publicas e fazer valer seu direito. Estou muito otimista e acredito que em 2011 teremos muitas surpresas, em que finalmente o povo chegue ao poder.



*Esta entrevista também foi públicada em versão impressa pelo Jornal Brasil de Fato

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Bolívia: Che Guevara estava certo e Marx também

Diz-se por ai que Che Guevara fez uma má leitura da conjuntura política boliviana e por isso a sua guerrilha fracassou e ele foi assassinado. Diz-se também que Marx errou ao anunciar os operários como sujeito revolucionário e os camponeses como reacionários. Será?

Che Guevara e o seu legado

Che Guevara chegou à Bolívia nos finais de 1966 com a ideia de fazer uma revolução armada, assim como foi feita em Cuba no ano de 1959 com apoio dos camponeses. Sua guerrilha obteve apoio dos trabalhadores mineiros, mas não dos camponeses, diferente do que havia passado em Cuba. Isso porque no ano de 1967 a Bolívia estava governada por uma ditadura militar que, aproveitando as conquistas da Revolução de 1952, que começou um processo de Reforma Agrária, fez um acordo com o setor camponês. Além desse acordo, a publicidade contra a guerrilha era muito forte e espalhou-se o terror entre os camponeses. Diziam que os guerrilheiros comunistas queriam tirar as terras conquistadas pelos camponeses durante a Reforma Agrária para dar a outras pessoas. Nesse momento Marx estaria certo em relação aos camponeses bolivianos do meio do século XX, assim como estava certo em relação aos camponeses do século XIX. Muitos dos camponeses se opuseram ao movimento guerrilheiro-revolucionário por falta de informação e por defender a sua propriedade e acabaram por delatá-lo ao exército boliviano, o que fez com que os guerrilheiros fossem assassinados aos poucos. No dia 08 de outubro 1967 o comandante Che Guevara foi capturado e, por ordem da CIA, executado no dia seguinte. Até aqui poderíamos pensar que Che Guevara teria se equivocado, já que ele morreu e a sua guerrilha desaparecu. Porém, a Revolução Boliviana não acaba no dia 09 de outubro de 1967. Pelo contrário. É aqui que ela começa.

Após a morte de Che Guevara uma imensidão de gente descobre quem ele era de fato. Melhor que a publicidade anticomunista dos militares e dos EUA e qualquer publicidade que a guerrilha poderia ter feito a seu favor, a morte de Che a fez. A sua guerrilha desapareceu, mas foi com a sua morte que o seu exército começou a aumentar. Diversos grupos de esquerda e grupos guerrilheiros inspirados na figura de Che começaram a surgir e crescer cada vez mais. Che se tornou um símbolo e uma inspiração para a juventude, para os trabalhadores e em especial para os camponeses na Bolívia. Até mesmo dentro do exército boliviano começaram a surgir guevaristas. Assim que nos finais da década de 1960 as lutas populares e socialistas começam a intensificar-se.

Universidade - La Paz


Os povos originários e os camponeses já estavam cansados de quase 500 anos de barbárie, exploração e de apenas resistir. As manifestações começam com o levante indígena na década de 1980. Resolveram sair da resistência e chegar às reivindicações. Feito que só se realizou porque estavam organizados. As reformas neoliberais e os abusos da direita não poderiam resistir a essa organização e a disposição à luta do povo boliviano.

Rádio no bairro Plan 3000 - Santa Cruz

Os dois maiores marcos na história contemporânea da Bolívia

a) No ano 2000 o governo boliviano provou a Lei nº2029 que permitia a venda dos recursos da água e que obrigava a população a pagar até mesmo para pegar água da chuva, além de outros absurdos. Assim que assumiu o controle da água, a empresa responsável aumentou a tarifa em 35%, tornando-a impagável para muita gente. Manifestações tomaram conta do Departamento de Cochabamba e os empresários que compraram Água de Tunari foram expulsos à força. Esse fato deu origem ao que se chama de A Guerra da Água. A pressão popular fez então com que a lei fosse modificada. Todo esse processo foi intensificado pelos trabalhadores das minas, pelos movimentos camponeses e indígenas, os quais já tinham como representante o então Deputado de Cochabamba Juan Evo Morales Ayma.

Debates políticos que acontecem todos os finais da tarde na praça 14 de Setembro - Cochabamba

b) Em 2003 o governo decide construir um gasoduto que iria até o Chile para se exportar gás natural ao México e aos EUA. O problema é que a população pagava caro pelo gás e nunca havia recebido benefícios pela sua venda. A idéia do governo era privilegiar a exportação em relação ao mercado interno boliviano. Foi então que os camponeses que haviam sido expulsos de suas terras e que foram viver na cidade de El Alto, região periférica da capital La Paz, resolvem fazer um paro cívico. O governo na tentativa de acabar com a revolta enviou o exército e o autorizou a disparar contra os manifestantes. No conflito o exército matou 5 pessoas, dentre elas uma criança. As manifestações então se massificaram, ganhando apoio dos movimentos sociais, dos camponeses e dos trabalhadores, e intensificam-se. Começam a exigir a renúncia do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Pressionado, Lozada renunciou em outubro de 2003 e em seguida fugiu do país. Assumiu a presidência Carlos Mesa que também foi obrigado a renunciar em 2005 pela radicalização das manifestações. A população estava esgotada e queria eleições antecipadas para eleger um representante do povo. São realizadas eleições no final de 2005 e ganha Evo Morales com quase 54% dos votos, junto com seu vice-presidente Álvaro García Linera (ex-guerrilheiro e importante intelectual marxista).

O proletariado e o protagonismo camponês

Na página 24 do Manifesto Comunista, Marx e Engels escrevem: “De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado pelo contrário, é o seu produto mais autêntico. As classes médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como classe média. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando são revolucionarias é em consequência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado.”.

Ora, me parece um pouco óbvio que eles se referiam ao campesinato e ao operariado fabril europeu do século XIX. Ou alguém realmente acha que o pequeno agricultor boliviano dos séculos XX e XXI representa a classe média?

Talvez algum desavisado, que não conheça o desenvolvimento capitalista na Bolívia e a sua história contemporânea, pudesse dizer que o campesinato boliviano continua sendo reacionário, pois, assim como Marx diz sobre o campesinato europeu do século XIX, só são revolucionários nesse momento histórico porque defendem seu interesse futuro, o interesse pela sua propriedade. Afirmar isso significa não saber que o campesinato boliviano do século XXI reivindica outro modo de produção, que não o da acumulação. O que está em pauta para eles não é a defesa da propriedade, se não a superação do capitalismo imperialista.

Marx então estaria errado? Não. Ele estava certo. Duplamente. Uma por referir-se aos camponeses europeus do século XIX como reacionários, porque esses sim representavam a classe média, eram fruto das revoluções burguesas e gozavam do desenvolvimento capitalista e industrial; e outra por dizer que a classe verdadeiramente revolucionária é o produto mais autêntico das atrocidades do desenvolvimento capitalista, ou seja, a sua prole. No caso boliviano, de economia tipicamente petroleira, mineira e agrícola, estes são os pequenos agricultores, os trabalhadores agrícolas, os ex-agricultores marginalizados (expulsos para a cidade) e os operários urbanos.

“As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sobre os nosso olhos” Marx e Engles, Manifesto Comunista, p.30.

Tentar titular Marx como um reformador do mundo seria um dos piores pecados marxistas. Para ele os trabalhadores são potencialmente os sujeitos revolucionários para superação do capitalismo porque são vítimas diretas da exploração do Capital e porque, como é do seu trabalho que se produz a riqueza de uma sociedade, são eles que possuem a arma para uma transformação. Esses eram os trabalhadores fabris na Alemanha e na Inglaterra na indústria crescente no século XIX, porque eles é que produziam a riqueza que sustentava essas duas potências. E esses foram os trabalhadores camponeses e mineiros bolivianos em 2003.

A Revolução Democrática

Os camponeses encabeçaram um processo revolucionário na Bolívia. Che Guevara então estaria certo? Talvez eu pudesse afirmar que não por saber que ele não era suicida. Mas posso afirmar que sim quando conheço os seus propósitos, suas convicções e seus princípios. A história e as revoluções não se constroem em um dia e nem em um ano. E Che obviamente sabia disso.

No ano de 2005 o camponês cocaleiro Evo Morales, nascido em 1959, filho da Revolução Cubana e das manifestações dos trabalhadores bolivianos, ganhou as eleições para presidente. Havia sido o primeiro deputado indígena em 1997 e agora é o primeiro presidente indígena da Bolívia. A partir de 2006, seu primeiro ano de governo, é que começam as transformações: a principal delas é que a governabilidade foi transferida da embaixada dos EUA para as ruas, ou seja, não é mais com os EUA que o governo negocia suas políticas, se não com o povo nas ruas e nas suas comunidades; o governo é cada vez mais tomado por indígenas, que representam mais de 60% da população boliviana; nacionalizações de setores estratégicos (antes de 2005 as empresas estrangeiras – dentre elas a Petrobrás - possuíam 73% dos lucros do petróleo, enquanto o Estado possuía somente os 27% restantes. Depois de 2006 a porcentagem inverteu-se; até 2005 o estado tinha entre 33% e 35% dos lucros sobre a mineração. Em 2008 passou a ser de 55% a 75%; antes de 2005 o Estado possuía 27% dos lucros do setor de telecomunicações. Hoje tem 39%); até 2005 o governo não investia nada na agricultura e em 2008 já investia cerca de US$210 mi em crédito para os pequenos produtores; os dirigentes dos movimentos sociais ocupam cargos de ministros; hoje são reconhecidos os 36 diferentes idiomas das 36 diferentes nações que existem no país (idiomas que por muito tempo foram proibidos de serem usados em espaços públicos); a República da Bolívia deu lugar ao Estado Plurinacional da Bolívia; a bandeira indígena Wipala agora divide espaço com a bandeira da república que é verde, amarela e vermelha; aprovou-se uma nova constituição de caráter popular e democrático; o poder judiciário agora é escolhido por eleição assim como o poder legislativo e executivo; etc.

Palácio do Governo - La Paz

Depois de quatro anos de governo popular, Evo Morales, o partido MAS (Movimento ao Socialismo), o Pacto de Unidade (organização que congrega os cinco principais movimentos sociais da Bolívia: Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia - CIDOB, Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia - CSUTCB, Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias de Bolivia “Bartolina Sisa” - FNMCIOB”BS”, Confederación Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia - CSCIB e Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu - CONAMAQ) e o povo boliviano, ganharam uma vez mais as eleições para presidência em 2009 (desta vez com mais de 64% dos votos) e conseguiram eleger governadores nos seis dos nove departamentos (estados) na eleição de 2010.

De fato não se pode chamar o processo boliviano de uma revolução socialista (Álvaro Garcia Linera, vice-presidente, prefere chamar essa construção de Socialismo Comunitário, em uma tentativa de criar a conciliação do socialismo enquanto superação do capitalismo e da herança histórica da organização comunitária indígena). Porém, é inegável que a luta entre as classes sociais já não pende mais para o mesmo lado que antes de 2006.

sábado, 11 de setembro de 2010

O dia em que o azul se separou do amarelo

Ontem você me deu a triste notícia de que voltaria já ao Brasil.

Passamos por Cuba, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia e foram exatamente sete meses e meio juntos. Às vezes acompanhados de outros, mas todos passageiros. Éramos só nós mesmo.

Havia momentos em que éramos uma só pessoa, momentos em que éramos dois e momentos em que parecíamos muitos. Me lembro que nossa primeira discussão aconteceu quando achei que éramos uma só pessoa, já a segunda porque achei que éramos duas.

Eram literalmente 24 horas juntos. Dividíamos o sabonete, a cama, a roupa, a comida, o tempo de internet. Quase tudo. Coisa que raros matrimônios suportariam.

Saímos do Brasil com um claro objetivo de compreender os processos políticos de cada país e também o que passa em totalidade na América Latina. Para isso necessitávamos conhecer a perspectiva dos povos sobre esse processo através dos movimentos sociais e das organizações populares. Conhecemos muita coisas e obtivemos muitas respostas. Mas acabaram ficando mais inquietações e dúvidas, das quais muitas, através de nossas reflexões, se tornaram grandes responsabilidades.

Encontramos coisas também que a princípio não buscávamos: descobrimos mais a fundo o que é a saudade, a amizade, o amor, etc.

Quanto mais o tempo passava, mais a vontade de voltar ao Brasil (para matar a saudade que sentíamos, pelas responsabilidades que deixamos para trás, ou para lutar) aumentava, mesmo que em proporções diferentes.

Acho que sempre ficarei com a dúvida de que algo poderia ter sido diferente. Talvez se você falasse mais. Talvez se eu tivesse perguntado mais.

Enfim essa nossa busca pela América Latina acaba aqui, dia 5 de setembro de 2010, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia. Isso porque não faz sentido pensar que eu possa fazer a nossa viagem sozinho. Viajar agora não possui mais o mesmo significado que antes, pois não terá mais nossas reflexões e conclusões.

Muita coisa se passou ao longo desses sete meses e meio. Eu poderia ficar horas escrevendo sobre cada passo que demos, mas deixarei isso para todas as conversas que ainda teremos ao longo de nossas vidas. Não podemos ser um agora que estamos separados, porém poderemos sê-lo sempre que nos encontrarmos.

Aí é que vem a boa noticia: sempre que o azul se encontrar com o amarelo, eles voltarão a ser o verde.



Nos vemos no Brasil!

Beijos Miguxo!

Theo.

Santa Cruz, 5 de setembro de 2010.