"A cabeça pensa onde os pés pisam" Paulo Freire

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Bolívia: Che Guevara estava certo e Marx também

Diz-se por ai que Che Guevara fez uma má leitura da conjuntura política boliviana e por isso a sua guerrilha fracassou e ele foi assassinado. Diz-se também que Marx errou ao anunciar os operários como sujeito revolucionário e os camponeses como reacionários. Será?

Che Guevara e o seu legado

Che Guevara chegou à Bolívia nos finais de 1966 com a ideia de fazer uma revolução armada, assim como foi feita em Cuba no ano de 1959 com apoio dos camponeses. Sua guerrilha obteve apoio dos trabalhadores mineiros, mas não dos camponeses, diferente do que havia passado em Cuba. Isso porque no ano de 1967 a Bolívia estava governada por uma ditadura militar que, aproveitando as conquistas da Revolução de 1952, que começou um processo de Reforma Agrária, fez um acordo com o setor camponês. Além desse acordo, a publicidade contra a guerrilha era muito forte e espalhou-se o terror entre os camponeses. Diziam que os guerrilheiros comunistas queriam tirar as terras conquistadas pelos camponeses durante a Reforma Agrária para dar a outras pessoas. Nesse momento Marx estaria certo em relação aos camponeses bolivianos do meio do século XX, assim como estava certo em relação aos camponeses do século XIX. Muitos dos camponeses se opuseram ao movimento guerrilheiro-revolucionário por falta de informação e por defender a sua propriedade e acabaram por delatá-lo ao exército boliviano, o que fez com que os guerrilheiros fossem assassinados aos poucos. No dia 08 de outubro 1967 o comandante Che Guevara foi capturado e, por ordem da CIA, executado no dia seguinte. Até aqui poderíamos pensar que Che Guevara teria se equivocado, já que ele morreu e a sua guerrilha desaparecu. Porém, a Revolução Boliviana não acaba no dia 09 de outubro de 1967. Pelo contrário. É aqui que ela começa.

Após a morte de Che Guevara uma imensidão de gente descobre quem ele era de fato. Melhor que a publicidade anticomunista dos militares e dos EUA e qualquer publicidade que a guerrilha poderia ter feito a seu favor, a morte de Che a fez. A sua guerrilha desapareceu, mas foi com a sua morte que o seu exército começou a aumentar. Diversos grupos de esquerda e grupos guerrilheiros inspirados na figura de Che começaram a surgir e crescer cada vez mais. Che se tornou um símbolo e uma inspiração para a juventude, para os trabalhadores e em especial para os camponeses na Bolívia. Até mesmo dentro do exército boliviano começaram a surgir guevaristas. Assim que nos finais da década de 1960 as lutas populares e socialistas começam a intensificar-se.

Universidade - La Paz


Os povos originários e os camponeses já estavam cansados de quase 500 anos de barbárie, exploração e de apenas resistir. As manifestações começam com o levante indígena na década de 1980. Resolveram sair da resistência e chegar às reivindicações. Feito que só se realizou porque estavam organizados. As reformas neoliberais e os abusos da direita não poderiam resistir a essa organização e a disposição à luta do povo boliviano.

Rádio no bairro Plan 3000 - Santa Cruz

Os dois maiores marcos na história contemporânea da Bolívia

a) No ano 2000 o governo boliviano provou a Lei nº2029 que permitia a venda dos recursos da água e que obrigava a população a pagar até mesmo para pegar água da chuva, além de outros absurdos. Assim que assumiu o controle da água, a empresa responsável aumentou a tarifa em 35%, tornando-a impagável para muita gente. Manifestações tomaram conta do Departamento de Cochabamba e os empresários que compraram Água de Tunari foram expulsos à força. Esse fato deu origem ao que se chama de A Guerra da Água. A pressão popular fez então com que a lei fosse modificada. Todo esse processo foi intensificado pelos trabalhadores das minas, pelos movimentos camponeses e indígenas, os quais já tinham como representante o então Deputado de Cochabamba Juan Evo Morales Ayma.

Debates políticos que acontecem todos os finais da tarde na praça 14 de Setembro - Cochabamba

b) Em 2003 o governo decide construir um gasoduto que iria até o Chile para se exportar gás natural ao México e aos EUA. O problema é que a população pagava caro pelo gás e nunca havia recebido benefícios pela sua venda. A idéia do governo era privilegiar a exportação em relação ao mercado interno boliviano. Foi então que os camponeses que haviam sido expulsos de suas terras e que foram viver na cidade de El Alto, região periférica da capital La Paz, resolvem fazer um paro cívico. O governo na tentativa de acabar com a revolta enviou o exército e o autorizou a disparar contra os manifestantes. No conflito o exército matou 5 pessoas, dentre elas uma criança. As manifestações então se massificaram, ganhando apoio dos movimentos sociais, dos camponeses e dos trabalhadores, e intensificam-se. Começam a exigir a renúncia do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Pressionado, Lozada renunciou em outubro de 2003 e em seguida fugiu do país. Assumiu a presidência Carlos Mesa que também foi obrigado a renunciar em 2005 pela radicalização das manifestações. A população estava esgotada e queria eleições antecipadas para eleger um representante do povo. São realizadas eleições no final de 2005 e ganha Evo Morales com quase 54% dos votos, junto com seu vice-presidente Álvaro García Linera (ex-guerrilheiro e importante intelectual marxista).

O proletariado e o protagonismo camponês

Na página 24 do Manifesto Comunista, Marx e Engels escrevem: “De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado pelo contrário, é o seu produto mais autêntico. As classes médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como classe média. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando são revolucionarias é em consequência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado.”.

Ora, me parece um pouco óbvio que eles se referiam ao campesinato e ao operariado fabril europeu do século XIX. Ou alguém realmente acha que o pequeno agricultor boliviano dos séculos XX e XXI representa a classe média?

Talvez algum desavisado, que não conheça o desenvolvimento capitalista na Bolívia e a sua história contemporânea, pudesse dizer que o campesinato boliviano continua sendo reacionário, pois, assim como Marx diz sobre o campesinato europeu do século XIX, só são revolucionários nesse momento histórico porque defendem seu interesse futuro, o interesse pela sua propriedade. Afirmar isso significa não saber que o campesinato boliviano do século XXI reivindica outro modo de produção, que não o da acumulação. O que está em pauta para eles não é a defesa da propriedade, se não a superação do capitalismo imperialista.

Marx então estaria errado? Não. Ele estava certo. Duplamente. Uma por referir-se aos camponeses europeus do século XIX como reacionários, porque esses sim representavam a classe média, eram fruto das revoluções burguesas e gozavam do desenvolvimento capitalista e industrial; e outra por dizer que a classe verdadeiramente revolucionária é o produto mais autêntico das atrocidades do desenvolvimento capitalista, ou seja, a sua prole. No caso boliviano, de economia tipicamente petroleira, mineira e agrícola, estes são os pequenos agricultores, os trabalhadores agrícolas, os ex-agricultores marginalizados (expulsos para a cidade) e os operários urbanos.

“As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sobre os nosso olhos” Marx e Engles, Manifesto Comunista, p.30.

Tentar titular Marx como um reformador do mundo seria um dos piores pecados marxistas. Para ele os trabalhadores são potencialmente os sujeitos revolucionários para superação do capitalismo porque são vítimas diretas da exploração do Capital e porque, como é do seu trabalho que se produz a riqueza de uma sociedade, são eles que possuem a arma para uma transformação. Esses eram os trabalhadores fabris na Alemanha e na Inglaterra na indústria crescente no século XIX, porque eles é que produziam a riqueza que sustentava essas duas potências. E esses foram os trabalhadores camponeses e mineiros bolivianos em 2003.

A Revolução Democrática

Os camponeses encabeçaram um processo revolucionário na Bolívia. Che Guevara então estaria certo? Talvez eu pudesse afirmar que não por saber que ele não era suicida. Mas posso afirmar que sim quando conheço os seus propósitos, suas convicções e seus princípios. A história e as revoluções não se constroem em um dia e nem em um ano. E Che obviamente sabia disso.

No ano de 2005 o camponês cocaleiro Evo Morales, nascido em 1959, filho da Revolução Cubana e das manifestações dos trabalhadores bolivianos, ganhou as eleições para presidente. Havia sido o primeiro deputado indígena em 1997 e agora é o primeiro presidente indígena da Bolívia. A partir de 2006, seu primeiro ano de governo, é que começam as transformações: a principal delas é que a governabilidade foi transferida da embaixada dos EUA para as ruas, ou seja, não é mais com os EUA que o governo negocia suas políticas, se não com o povo nas ruas e nas suas comunidades; o governo é cada vez mais tomado por indígenas, que representam mais de 60% da população boliviana; nacionalizações de setores estratégicos (antes de 2005 as empresas estrangeiras – dentre elas a Petrobrás - possuíam 73% dos lucros do petróleo, enquanto o Estado possuía somente os 27% restantes. Depois de 2006 a porcentagem inverteu-se; até 2005 o estado tinha entre 33% e 35% dos lucros sobre a mineração. Em 2008 passou a ser de 55% a 75%; antes de 2005 o Estado possuía 27% dos lucros do setor de telecomunicações. Hoje tem 39%); até 2005 o governo não investia nada na agricultura e em 2008 já investia cerca de US$210 mi em crédito para os pequenos produtores; os dirigentes dos movimentos sociais ocupam cargos de ministros; hoje são reconhecidos os 36 diferentes idiomas das 36 diferentes nações que existem no país (idiomas que por muito tempo foram proibidos de serem usados em espaços públicos); a República da Bolívia deu lugar ao Estado Plurinacional da Bolívia; a bandeira indígena Wipala agora divide espaço com a bandeira da república que é verde, amarela e vermelha; aprovou-se uma nova constituição de caráter popular e democrático; o poder judiciário agora é escolhido por eleição assim como o poder legislativo e executivo; etc.

Palácio do Governo - La Paz

Depois de quatro anos de governo popular, Evo Morales, o partido MAS (Movimento ao Socialismo), o Pacto de Unidade (organização que congrega os cinco principais movimentos sociais da Bolívia: Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia - CIDOB, Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia - CSUTCB, Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originarias de Bolivia “Bartolina Sisa” - FNMCIOB”BS”, Confederación Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia - CSCIB e Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu - CONAMAQ) e o povo boliviano, ganharam uma vez mais as eleições para presidência em 2009 (desta vez com mais de 64% dos votos) e conseguiram eleger governadores nos seis dos nove departamentos (estados) na eleição de 2010.

De fato não se pode chamar o processo boliviano de uma revolução socialista (Álvaro Garcia Linera, vice-presidente, prefere chamar essa construção de Socialismo Comunitário, em uma tentativa de criar a conciliação do socialismo enquanto superação do capitalismo e da herança histórica da organização comunitária indígena). Porém, é inegável que a luta entre as classes sociais já não pende mais para o mesmo lado que antes de 2006.

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