"A cabeça pensa onde os pés pisam" Paulo Freire

domingo, 4 de julho de 2010

Ao camarada Andrej

Caro Andrej,

resolvi escrever essa carta por conta das nossas conversas nos corredores do Instituto de Economia da Unicamp sobre Cuba em que muitas das perguntas ficaram sem respostas e porque me lembro de combinarmos que o primeiro a ir para lá deveria respondê-las.

Escrevo mais de quatro meses depois de ter passado por Cuba não por acaso...

Sempre está na moda nos grandes meios de comunicação procurar defeitos ou problemas na ilha e por isso começarei pelo que está desfilando nas passarelas nesse momento que é dizer que os membro do Partico Comunista Cubano (PCC) possuem "privilégios", ou que estaria se formando uma "casta política" entre os deputados (coisas repetidas inclusive pela esquerda por ai...).

Bom, é no mínimo estranho pensar que está se formando essa casta política entre os deputados, sendo que estes se quer recebem um salário pelo seu trabalho como deputado. Aliás, ser deputado não é considerado um trabalho, se não uma tarefa revolucionária, e portanto, uma tarefa que exige um certo sacrifício. Além disso, tal afirmação me parece ainda mais estranha, sendo que Cuba tem o modelo se eleição mais democrático que eu já conheci. Outro dia ouvi dizer que é semelhante ao modelo da Suiça ou da Suécia (não me lembro exatamente qual dos dois). O problema é que eu preciso juntar muitos mais dólares para conhecer esse modelo do que para conhecer o de Cuba.

Dizer sobre esses privilégios dos militantes me parece ainda mais absurdo. Para começar, os militantes do PCC, que hoje são cerca de 800.000 em um país de 11.000.000 de habitantes (talvez a maior proporção de militantes/habitante do mundo, se desconsiderarmos o PSUV da Venezuela que possui 7.000.000, mas que nem todos são militantes de verdade), são indicados pela própria população por serem um exemplo na sua comunidade, na escola, no trabalho, na família, etc.

Dizer que é um privilégio que as pessoas que se destacam em sua profissão possam ir a congressos internacionais financiadas pelo Estado em um país em que individualmente quase ninguem tem condição de viajar para fora do país também me parece pura hipocrisia de indinheirados. Privilégio para mim é alguem viajar porque tem dinheiro e não porque é uma referência em sua profissão.

Cuba ainda é um país meritocrático, diferente dos países capitalistas, salvo raríssimas excepções. Todos possuem acesso à educação, da creche à universidade. E a questão aqui não é só de acesso, se não de uma metodologia não individualista e de classe. Em Cuba mais do que ensinar, se educa.

Um dia eu joguei xadrez com uma menina de sete ou oito anos e quase perdi. Talvez eu tenha ganhado porque minha capacidade de concentração ainda seja um pouco melhor que a dela.

Como já é sabido, mas não divulgado, além do acesso e da qualidade do ensino, tod@s têm acesso a um dos melhores serviços de saúde do mundo, que está baseado na prevenção e não simplismente em medicação. Remédios e a cesta básica da alimentação não tem nunhum custo. O aborto é legalizado e acompanhado por um@ médic@. Cuba "exporta" médicos para os países que necessitam.

Lá a produção de leite é baixa e o governo está tentando incentivá-la. Por isso, iogurte e leite são prioritariamente destinados às crianças e não para quem tem dinheiro independentemente da sua necessidade.

Imagine uma sociedade em que as riquezas produzidas são destinadas à saúde, alimentação e educação principalmente: Cuba!

Comumente se diz que o Fidel Castro também possui privilégios, que possui muito dinheiro e que anda de Mercedes blindado. Para mim parece até piada afirmar que uma pessoa que em 1957 saiu do México em uma balsa com apenas mais 80 pessoas até Cuba para derrubar uma ditadura e porque tinha um projeto de uma nova sociedade igualitária e justa, tenha feito tudo isso para poder, aos 80 e tantos anos, ter mais dinheiro que os outros e andar de Mercedes blindado. Aliás, quanto ao Mercedes blindado, talvez as dezenas de tentativas de assassinatos a ele expliquem isso. E diga-se de passagem, fabricar um "Fidelmóvel", como o Papa tem o seu "papamóvel" seria um tanto quanto ridículo.

Outra coisa que está sempre na moda é dizer que em Cuba não há liberdade de expressão e que há censura.

É verdade, há censura. Censura do lixo que somos obrigados a escutar, ler e ver todos os dias. Acredito que ninguem ache correto que dez horas da manhã, quando normalmente uma criança está assistindo TV, passem propagandas com mulheres nuas ou semi-nuas rebolando e dizendo que as crianças só podem ser feliz se comprarem todos os brinquedos que estão sendo anunciados durante o intervalo do desenho animado. Em Cuba eles, infelizmente, assistem e adoram as novelas brasileiras. Na TV cubana passa o Brasileirão.

Em Cuba não há acesso a informação? Então como nas escolas eles aprendem a história quase do mundo todo e de todos dos movimentos sociais? A maioria deles sabe mais de história do Brasil do que a maioria dos brasileiros. Como eles sabem tanto de política nacional e internacional?

Enfim, o socialismo funciona, e funciona muito bem! Confesso que foi um alívio descobrir isso. Imagina ter que viver sabendo que isso que vivemos é o fim da história e que não pode ser mudado... O Florestan já dizia na década de 1980 que o mérito da Revolução Cubana estava sendo de construir o socialismo e o comunismo ao mesmo tempo. Em outras palavras, acabando com a propriedade privada e ao mesmo tempo construindo o "novo homem". Isso me dá ainda mais confiança hoje para afirmar que aquilo que os clássicos chamavam de "natureza humana" não existe. Claro que não se pode afirmar que o Che Guevara ou que os cubanos são os novos homens e mulheres, já que Cuba não está isolada do mundo e nem totalmente livre dos "vícios históricos" anteriores à revolução. Mas com certeza estão muitos mais à frente de todo o mundo.

Agora o desafio está posto para nós e tudo vai depender de que modo iremos construir a história e de que modo a história irá nos construir.

Enfim... O que me resta é te desejar uma boa viagem! Vá a Cuba e converse com o máximo de cuban@s que conseguir. Não cometa o erro de alguns de conversar com um@ cubano, seja em Cuba ou no exterior, que não suporta a idéia de dividir, e sair reproduzindo uma midéia que não representa nem 1% da população cubana.

Vá a Cuba e não converse somente sobre política. Fale sobre história, esporte, artes plásticas, teatro, cinema, música clássica, filosofia, pscicologia, Foulcault, o que seja. Converse com adultos, crianças, professores, estudantes, taxistas, policial, farmaceutico, médico, vendedor de sorvete, com tod@s.

Hoje eu me tornei, assim como Frei Betto e Florestan Fernandes, dentre tantos outros, um amante de Cuba. Mas não só por ter ido até a ilha conhecer a Revolução e @s cuban@s, mas principalmente por já ter passado por Venezuela, Colômbia e Equador, e por conhecer já a algum tempo o Brasil e saber a que ponto chegou o "desenvolvimento" capitalista nos países subdesenvolvidos e dependentes.

Um grande abraço,


Theo

Loja, 04 de julho de 2010

14 comentários:

  1. Podia ter colocado todas as respostas por aqui também Tél. Aliás, o senhor está sendo cobrado naquela acalanche de emails.
    Abrassão!

    Daniel

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  2. Theo,

    sei que a carta era pro Andrej, mas como vc mandou pro caeco, vou responde-la. Queria apenas congratulá-lo por trazer essa injeção de animo para terras tupiniquins. Muitos dos nossos realmente precisam dessa prova explicita de que socialismo nao se trata de utopia, de que é possivel e funciona. Felizmente, seu repertorio tornou-se muito mais notório no sentido de dar segurança e tranquilidade aqueles que temem algo novo e diferente. Parabens! Nao deixe de fazer relatos pormenorizados no seu retorno, sim?

    Abraços
    Armando

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  3. Theo,

    Gostei muito do relato. Me deu uma saudade imensa. Saudades de voce, da viagem, da vontade revolucionária que está em falta na sociedade em que vivo.
    Se me permite adicionar uma coisa ( que nós discordamos fervorosamente quando estavamos juntos), gostaria de escrever um pouco sobre o turismo em Cuba.

    O turismo é, na minha opinião, o capitalismo de Cuba. Cuba foi empurrada para isso pelo bloqueio economico que se faz muito cruel para o país. Os gastos extras com importações de suprimento básicos, como leite em pó, não tem grande contrapartida nas contas cubanas, sendo a entrada de grana pelo turismo a "janela" que Cuba conseguiu abrir para não morrer sufocada. Entretanto com essa janela, vieram insetos. E é ai que entra meu impasse com o você. Para mim, o conjunto de valores que entraram em Cuba são o germe do metabolismo perveso do capital.

    Os valores capitalista, as condições sujetivas, cooptam as pessoas. Elas veem os estrangeiras, seu estilo de vida, os cubanos que se destacam materialmente pela melhor remuneração do setor do turismo, a infra estrutura das quais eles não tem acesso, em fim, elas veem tudo isso e se perguntam, até quando serão privadas daquilo? Eu sei que em Cuba o novo homem esta em construção e ja é, em muitos aspectos, uma realidade. Mas o que me preocupa é que o capitalismo está entrando lá de forma brutal. Sei que o ser humano lá é outro, com outra consciencia, mas os mais jovem que não viveram a revolução questionam aquilo, e voce sabe disso. O ser humano não possuiu natureza, mas tenho que afirmar que uma caracteristica fundamental de todos é a vontade por melhoria das condições de vida, nem que imediatas. Eu quero acreditar que a população cubana terá força para enfrentar isso, mas, a longo prazo, não sei como serão as coisas...

    O socialismo de Cuba, sem a interferencia do capitalismo seria ideal. Eu me emociono de pensar num pais como aquele, na qual a etnia é imensamente parecida com a dos EUA, não ha preconceito. O controle, ou melhor, a planificação da economia gera resultados imensos para a população, como voce mesmo apresentou, theozera. Mas as condições objetivas do socialismo cubano, relativizadas pelos proprios cubanos quando veem os estrangeiros( ou a outros cubanos) e sua diferenciação material, em conjunto com os valores tipicamente capitalista, geram a corrosão do socialismo em Cuba.

    Quando voce voltar temos que sentar para conversar, com certeza absoluta. Só queria ponderar - não discordar de voce - que Cuba está perdendo seu socialismo, frente aos valores capitalistas que entram lá. Temos que lutar contra isso e, neste sentido, eu concordo com a censura e com a teimosia dos que defendem a revolução em prol da manutensão das conquistas sociais. O que mais me entristece é constatar (do meu ponto de vista, lógico) que um país que conseguiu uma mundança deste porte não esta sendo deixado seguir seu proprio caminho...

    Muitas saudades de voce e do Daniboy. Fala para ele que ele tem que usar aquele livrinho de espanhol mais vezes...

    abraços
    Franco

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  4. Fico feliz pela carta servir de injeçao de animo.. nao era a intençao, mas agora passou a ser.. haha.. isso é importante.. a minha fonte geralmente era ir até um assentamento do mst.. ali sim há um injeçao de animo e liçao de luta pela vida!

    Fico feliz tambem por voces terem lido, já que ela ficou bastante longa..

    A carta era pro Andrej, mas mandei de proposito para o grupo.. Acho que o mínimo que tem que ser feito é contradizer as mentiras que escutamos diariamente sobre Cuba e sobre socialismo.. Somos aterrorizados e obrigados a nos conformarmos com um reformismo ou com a socialdemocracia.. obviamente nao por acaso..

    Eu concordo em grande parte contigo franquera... Só que sou um pouco mais otimista.. hehe
    Acho que o turismo é uma merda e deixará suas cicatrizes.. principalmente porque assim como a novela, so mostra riqueza material e nao os 2 bilhoes de famintos e desnutridos que existem no mundo hoje..
    Acredito que a ALBA ajudará a acabar com a necessidade do turismo, e quem sabe nao gera riquezas suficientes para que todos os cubanos possam viajar por exemplo... seria ótimo se os cubanos pudessem viajar e saber de fato o que é pobreza, já que ela so é conhecida pelos mais velhos e pelos mais jovens pelos livros ou filmes...

    Enfim, espero que o Andrej leia a carta tambem ne.. alguem fala pra ele ver a caixa de e-mail.. haha

    abraçooo

    Theo

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  5. Muito bom o relato de Cuba. Para falar de algum lugar com propriedade é preciso conhecê-lo em sua essência. Acho que o Theo conseguiu fazer muito bem, neste sentido. E nesse caso, apesar de eu ter uma reflexão particular sobre Cuba, acho que foi a nação que melhor conseguiu socializar os meios de produção e avançar na libertação da humanidade(num sentido mais amplo). Digo isso porque, mesmo com todas as restrições materiais, os 50 anos de revolução permitiram criar uma outra cultura: senso de coletividade, identidade nacional(a única autêntica dentro do grupo de países subdesenvolvidos), dentre outros. Hoje a defesa de Cuba é a defesa contra as restrições impostas pelos países imperialistas(EUA e lacaios) e a defesa da revolução, seja na América Latina, seja em outros cantos do mundo. Ficam as minhas saudações por um mundo livre de toda a exploração e de toda opressão!

    "Hasta la victoria, siempre" .

    Daniel Monte Cardoso

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  6. Theo,

    Fico feliz em saber que minhas dúvidas e inquietações a respeito de Cuba tenham participado, pelo menos um pouco, da sua viagem.


    Diversos pontos levantados por você me parecem interessantes e gostaria de poder discuti-los todos. Mas os dois principais já me fizeram escrever demais e não quero encher de tédio nem você, nem quem mais se interesse por ler a minha resposta.

    Antes de mais nada, a sugestão de viagem está anotada e as dicas também. Cuba é um daqueles temas que causam reações apaixonadas (de ambas as partes), de modo que, provavelmente, é preciso ver Cuba para saber exatamente do que se está falando. Difícil confiar nos testemunhos...

    Isso não quer dizer que eu não acredite no que você relatou, mas preciso ter certeza de duas coisas que me preocuparam um pouco: a censura e o “homem novo”.

    Sobre a primeira, você diz:

    “Outra coisa que está sempre na moda é dizer que em Cuba não há liberdade de expressão e que há censura.

    É verdade, há censura. Censura do lixo que somos obrigados a escutar, ler e ver todos os dias. Acredito que ninguem ache correto que dez horas da manhã, quando normalmente uma criança está assistindo TV, passem propagandas com mulheres nuas ou semi-nuas rebolando e dizendo que as crianças só podem ser feliz se comprarem todos os brinquedos que estão sendo anunciados durante o intervalo do desenho animado”.

    A censura em Cuba é exclusivamente moral, circunscrita ao que se considera aceitável para o público infantil, ou devo entender o termo “lixo” em sentido amplo, ou seja, como “tudo o que é contra a construção do ‘homem novo’”?

    Se você me disser que é possível criticar o regime cubano em frente ao palácio do governo, de peito aberto e em voz alta, sem medo de ser preso ou exilado, então posso defender Cuba com a mesma paixão que você. Mas, se for preciso ficar calado para não atrapalhar o bom andamento do projeto revolucionário, então essa revolução claramente caminha numa direção que não me agrada. Não posso aceitar que as transformações sociais sejam incompatíveis com o exercício da liberdade de pensamento, que todo projeto revolucionário seja forçado a silenciar a crítica para poder se realizar.

    Entendo que muitas das críticas à Cuba são terrivelmente reacionárias. Mas nem todas são. Acreditar que é razoável silenciar as vozes dissonantes porque todas elas estarão “contra o povo” é pretender que a única crítica possível é a crítica do ‘marxismo latino-americano’, do ‘bolivarianismo’, do ‘nacionalismo revolucionário’ ou de qualquer outro agregado de termos controversos e carregados de imprecisão, construídos a partir de fragmentos de Marx, Bolívar e Martí (os dois últimos, diga-se de passagem, não eram exatamente marxistas e acho que não preciso voltar a dizer quanto me incomoda a ginástica intelectual que uns e outros fazem para justificar que todos os três sejam os fundamentos do pensamento crítico latino-americano).

    Antes de discutir o segundo ponto, que é a passagem mais instigante da sua carta, talvez eu precise me defender a respeito do que vou falar. Da maneira como entendo, o comunismo não é a única negação possível do capitalismo: outras formas de sociabilidade podem surgir e seria recomendável que deixássemos elas surgirem. Defendam o que quiserem, mas, por favor, não me aprisionem nesse jogo de oposições que não consegue conceber a diversidade das experiências humanas.

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  7. Você fala sobre a natureza humana:

    “O Florestan já dizia na década de 1980 que o mérito da Revolução Cubana estava sendo de construir o socialismo e o comunismo ao mesmo tempo. Em outras palavras, acabando com a propriedade privada e ao mesmo tempo construindo o "novo homem". Isso me dá ainda mais confiança hoje para afirmar que aquilo que os clássicos chamavam de "natureza humana" não existe”.

    Espero que esse novo homem se construa não a partir de uma idéia pré-estabelecida a respeito do que ele “deve ser”, mas a partir da crítica constante e implacável do que ele ainda é. Quanta potencialidade criativa não se silencia em nome desse “novo homem” que precisa ser criado a qualquer custo, e sobre o qual já sabemos tudo antes mesmo dele ser criado!? Somente me incomodo com essa filosofia de destino certo, que sabe, talvez perigosamente demais, aonde quer chegar. Prefiro o ceticismo de uma certa história, que procura nos fazer perceber todos os caminhos possíveis. Não Theo, não há natureza humana. Fico feliz que estejamos de acordo com isso. Mas também não me parece possível “construir o homem”. Talvez possamos desconstruí-lo...

    É possível que todas as minhas objeções sejam desnecessárias. Ficaria feliz se você me dissesse:

    - Sim, pode criticar quanto quiser, de megafone na mão!

    - Não, não sabemos o que é o “novo homem”, e nem queremos saber: vamos deixar que ele se construa a si mesmo, sem que essa construção seja fruto de uma deliberação do Partido.

    Nesse caso, estaremos de acordo.

    Enfim, espero não ter sido descortês em nenhum momento dessa resposta. Como disse no começo, fico muito feliz em saber que as nossas conversas foram tão importantes para você quanto para mim. Na verdade, refletir com os “camaradas” (acho que não me qualifico como camarada, mas talvez ainda seja um colega, com sorte, um amigo...) do Centro Acadêmico foi sempre fundamental e, quando digo que minha formação deve mais aos corredores do que às salas de aula, não exagero.

    Se discordamos quanto aos projetos, tenho esperança que ainda estejamos de acordo pelo menos quanto a um ponto: a necessidade de mudar. Longe de mim defender que as coisas estão boas, ou que bastam as reformas certas para que os problemas se resolvam. Só acho que precisamos pensar em outras formas de revolucionar, para além da tomada do Palácio de Inverno...

    Um abraço,

    Boa viagem,

    Andrej

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  8. Theo,

    Parabens e obrigado pela carta, mesmo não sendo (ou seria) endereçada a todos nós. É sempre bom ouvir um relato tão íntimo. Melhor ainda quando se conhece o narrador, e se pode imaginar o que vai passando pela sua cabeça.

    Sobre o tema especificamente, nada a acrescentar por enquanto. Você nos deve uma longa conversa.

    Abraço e boa viagem

    Lucas Salvador Andrietta

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  9. "Artigo VII:
    A Comuna proclama a anistia geral e a abolição da pena de morte e declara que a sua ação se baseia nos seguintes princípios: dissolução da policia municipal, dita policia parisiense; dissolução dos tribunais e tribunais superiores; transformação do Palácio da Justiça, situado no centro da cidade, num vasto recinto de atração e de divertimento para crianças de todas as idades; em cada bairro de Paris é criada uma milicia popular composta por todos os cidadãos, homens e mulheres, de idade superior a 15 anos e inferior a 60 anos, que habitem o bairro; são abolidos todos os casos de delitos de opinião, de imprensa e as diversas formas de censura: política, moral, religiosa, etc ;
    Paris é proclamada terra de asilo e aberta a todos os revolucionários estrangeiros, expulsos pelas suas idéias e ações."

    Daniel Costa

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  10. Daniel,

    Não acho que eu tenha entrado em contradição com o Artigo VII da Proclamação ao Povo da Comuna de Paris. Aliás, com artigo nenhum dessa declaração. A questão que propus, na resposta ao Theo, é justamente a de saber se o regime cubano entra em contradição com tais princípios...

    Para ser mais claro: o comunismo da comuna não é exatamente o comunismo do século XX. Até que ponto os princípios se reproduzem nas práticas? Se me permite uma provocação, a Comuna durou muito pouco. As razões para o fim prematuro do movimento, apresentadas pelos mais ilustres pensadores da esquerda, são as mais variadas – da falta de organização à ausência de um “partido proletário” que assumisse a liderança. Havendo um partido, talvez a Comuna não tivesse sido derrotada... e talvez as novas lideranças se vissem na obrigação de suprimir o artigo VII.

    Quando disse que “não posso aceitar que as transformações sociais sejam incompatíveis com o exercício da liberdade de pensamento, que todo projeto revolucionário seja forçado a silenciar a crítica para poder se realizar”, honestamente manifestei o meu incômodo com as limitações dessa nossa forma de pensar – e promover – as mudanças, sempre a se deparar com o impossível.

    Pensei que talvez pudéssemos nos distanciar um pouco do plano da fé na revolução, para discutirmos, com toda a franqueza, as possibilidades e os impasses para a realização desse projeto revolucionário (o da Comuna, não o da URSS).

    E, por favor, não abandone agora o seu “materialismo” para me dizer que, no plano das idéias, das intenções ou dos afetos, o comunismo nunca deixou de se remeter à Comuna.

    Andrej

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  11. Andrej meu caro, não foi uma crítica, só coloquei a passagem porque achei uma referência aos princípios que você estava defendendo (com muita razão). Talvez eu tenha sido descuidado demais em colocar aquilo sem nenhuma explicação. Acho que você exagerou ao pedir para nos distanciarmos da fé e discutirmos com franqueza. Nunca foi uma questão dogmática nem nunca foi uma postura ideológica desonesta.


    Eu concordo com você que a questão é muito delicada e que o comunismo do século XIX é diferente do XX. Mas temos que tomar cuidado com a corrupção das palavras. Pelo comunismo se propõe, em último plano (e até agora nunca obtido), a emancipação do homem em relação a um poder que se reproduz reduzindo-o à condição de mercadoria. Isso se daria por uma intervenção nas condições sustentam esse padrão de reprodução da nossa vida em sociedade, suas condições materiais. E até esse objetivo último a intervenção pode se dar em várias escalas.



    As sociedades da América Latina mais ou menos compartilham de um padrão específico de reprodução dessas relações de opressão que gera uma situação de exclusão e violência explícita permanente.



    As condições materiais responsáveis por isso decorrem de uma segregação interna (historicamente determinada) que monopoliza três elementos-chave para que uma elite (privilegiada e também cativa do próprio capital) gerencie uma espécie de cafetinagem internacional no quadro de divisão do trabalho entre os países.



    Esses três trunfos são três formas de monopólio: o poder sobre a natureza (terra), sobre (a reprodução da vida das) as pessoas (pela administração de uma situação de despropriação em larga escala) e sobre o Estado (que permite administrar a violência de forma organizada e operar os mecanismos centrais de transcrição de relações sociais de opressão em ativos mercantis).



    Não acho que Cuba tenha atingido o objetivo de acabar com as relações de opressão e com a ideologia econômica. Acho que ainda não temos uma resposta de como obter essa façanha em um contexto de elevadíssimo grau de divisão social do trabalho e integração transnacional das forças produtivas.



    Contudo, na medida em que o povo cubano tenha conseguido modificar o monopólio da terra, intervir sobre a forma como a população acessa os elementos básicos de sua reprodução (educação, saúde, alimentação, vestuário, moradia, etc.) e a forma como o Estado é exposto às contradições da sociedade, eles estão mais pertos de sua autodeterminação.



    Eu absolutamente discordo da explicação que você escolheu (embora você tenha mencionado as controvérsias) para justificar o fim da Comuna (que, de fato, nem precisa ser reivindicada). Eles não se dissolveram, eles foram assassinados por um exército. Muito menos concordo com a insinuação que a ditadura e a disciplina de Estado são um mal necessário para o processo de emancipação coletiva revolucionária. Me parece exatamente o contrário. Talvez você pudesse desenvolver um pouco mais essa sensação que, de fato, está intuitivamente presente, assim como explicar o que é o “impossível” com o qual nossa forma de pensar sempre se depara.



    Abraços,

    Daniel

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  12. Realmente. Não existe socialismo em Cuba! Pelo menos não no sentido ideal e filosófico da palavra. Não existe em seu sentido indissiocrático. Não existe porque ainda não surgiu. Não existe como materialidade concreta porque nunca se propôs a negar o capitalismo, mas sim o de superar, supra-sumir o capitalismo, de afirmá-lo e negá-lo sucessivamente. O socialismo não é, porque ainda não foi, pode estar sendo, chegará a ser, mais ainda não é. O socialismo não é, porque não é oposição, não é único, pode ser o que for, pode ser reinventado, reproduzido. O socialismo nem é mesmo socialismo, pode ser qualquer ismo. Não importa, porque o que importa é o que e como será.

    Cuba não pode ser socialista, porque ainda coexistem e entrelaçam-se relações e resquícios capitalistas. Cuba não pode ser socialista porque as próprias condições materiais e objetivas lhes são tolhidas e as riquezas materiais escassas. Cuba não pode ser socialista, porque as liberdades políticas são contestadas. Cuba não pode ser socialista, se o regime do capital rodeia a ilha, os interesses privados corrompem as bases sociais e as forças militares bloqueiam e pressionam.

    Mas Cuba é socialista ! Não no sentido ideal, mas no sentido concreto. Como um país tão pobre faz tanto pelos seus semelhantes? Cuba é socialista em sua coletividade. Cuba é socialista pois mais do que qualquer outro país, os cubanos têm consciência de si e do seu momento histórico. Cuba é socialista porque conhece o seu passado e projeta o seu futuro. Cuba é socialista, porque apesar dos tolhimentos das liberdades políticas, a própria liberdade é um conceito muito mais complexo e pressupõe conhecimento de si, do seu tempo, pressupõe reconhecer as necessidades e as possibilidades. Neste sentido, a liberdade cubana é pautada por muito mais do que o direito à expressão política, é pautada pelo direito à terra, direito à educação, direito à justiça e igualdade, direito ao trabalho. Infelizmente, estamos longe de alcançarmos a plena liberdade, porque o ser humano é um ser social que depende necessariamente do outro para produzir-se e reproduzir-se. A plena liberdade de uns é pressuposto para o tolhimento das liberdades de outros.



    Por isso que defendo Cuba. Defendo Cuba não porque é o melhor dos mundos, não porque não haja problemas e contradições em seu regime. Defendo Cuba porque ele se apresenta uma alternativa concreta ao às mazelas intrínsecas ao próprio capitalismo. Defendo Cuba porque sei que por motivos externos à própria ilha, o seu desenvolvimento econômico e inclusive político é solapado. Defendo Cuba porque apesar de tudo, eles construíram uma sociedade muito mais justa e igualitária do que a nossa.



    Sei que a solução para a superação dos nossos dilemas é difíceis. O primeiro passo, conforme Paulo Freire, é se identificar com os oprimidos e com eles compartilhar um projeto. Infelizmente também gostaria que as coisas fossem resolvidas pelo pacifismo. Mas por diversas vezes na história do nosso país, a classe opressora atuou com extrema truculência, acabando com qualquer projeto alternativo de sociedade.


    A questão não é defender a violência como meio, e nem afirmar que os meios justificam os fins. A questão é entender que o antagonismo e a luta de classes são conceitos que expressam interesses divergentes no seio da nossa sociedade, e que idéias metafísicas e pacifistas são incapazes de dar respostas e mais contribuem na manutenção do status quo do que para superá-lo.


    A superação das contradições do regime cubano só acontecerá com a superação do próprio regime do capital, e esta superação só pode acontecer na práxis, na unidade entre ação e reflexão, teoria e, principalmente, prática.

    Leandro Ramos

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  13. "A burguesia já não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu demasiadamente. O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito move-se com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como afirmei em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos deslocaram-se do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais" (MARIÁTEGUI, 1925a).

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  14. Theo, não conhecia o blog. Bom demais essa sua iniciativa - tanto da viajem quanto do blog.

    Frente a desesperança que é cada vez mais presente, ao aumento da miséria e da fome no mundo(prucê vê, a fome aumentou em 400 milhões nos últimos 5 anos), ao ver a grande maioria das pessoas chafurdando na doença do consumo cego e do trabalho que escraviza cada dia mais, é massa ver alguém falando de revolução, cuba, venezuela, enfim, discutindo política.

    Mas me diz uma coisa: a gente ainda não fica muito refém dos partidos guias e de algumas personalidades? Não deveríamos, ao invés disso, ter como referência a população - os conselhos populares e similares - que fez e faz as revoluções, ao invés das lideranças como Chavez, Raul, Fidel, PSUV, PCC? Ou eu to sendo muito ingênuo e nesse momento histórico não nos resta outra alternativa a não ser defender esses caras frente a ofensiva das transnacionais? Mas não tá na hora de criarmos alternativas de base que questionem as lideranças perenes?

    Mas ó, reafirmo: viva as conquistas da revolução cubana! Viva as conquistas na Venezuela, Equador e Bolívia. Agora o "viva Raul!" e "viva Fidel!" eu vou ficar devendo... hehehe
    Abração

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